Santo André, 02 de março de 2022
Aos amados do Senhor (2Ts 2, 13) Presbíteros e Diáconos,
Clero da Diocese de Santo André-SP
A Paz de Cristo esteja contigo!
Dirijo-me a você para lhe desejar no início desta Quaresma, uma Santa e Feliz Páscoa que é, aliás a meta deste período penitencial. Escrevo-lhe porque creio na importância do seu ministério para a missão da Igreja, e também porque desde que aqui cheguei a seis anos, grande parte de minhas atenções e preocupações tem sido com o Clero de nossa Diocese. Creio firmemente que, se o Clero está bem, os fiéis leigos e toda a Igreja estarão bem, porque vós sois os pastores encarregados de unir, alimentar e guiar o rebanho do Senhor.
Nossa situação a nível de mundo, sociedade e Igreja é de crise. A crise é uma oportunidade de crescimento como todos sabemos. e de escolhas também. Se não se sabe gerenciar bem uma crise as consequências podem ser fatais. Mais que nunca, nesta quaresma, precisamos ouvir o apelo de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Me 1, 15).
O Evangelho de Mateus relata o chamado deste apóstolo em quatro movimentos: 1. Jesus olhou com misericórdia, 2. Jesus chamou, 3. Mateus levantou-se e abandonou a banca, 4. Mateus seguiu Jesus. Na sua vida, prezado presbítero, diácono, isto já aconteceu. Você está no seguimento mais estreito de Jesus. desde que recebeu o ministério ordenado. Como viver esta “aventura” sem desanimar?
Nosso tempo é desafiador e talvez você não contasse com tantos impasses e decepções. Todos fomos pegos de surpresa, não só pela pandemia, mas por algo que já estava nos incomodando. É esta nova fase da “pós-modernidade”, a sociedade líquida, permeada pela irracionalidade e o vazio gerado pelo narcisismo. Tudo isto se agravou com o alastrar-se da covid-19. É frequente ouvirmos de membros do clero desabafos, nos quais transparecem desencanto, tristeza, sentimento de frustração e isolamento etc. Alguns, tangidos pela dor dos questionamentos vitais, se desesperam, ou fogem, ou praticam erros irreparáveis, como o suicídio.
Como seu bispo estou consciente da dor que às vezes o fustiga quando bate o desencanto ou decepção. Procuro fazer o que posso para ajudar. Esta ajuda porém leva em conta que, mesmo na sua dor, você deve ser respeitado, ou seja, tratado como adulto, responsável, capaz de reagir e lutar por dias melhores. E por que não receber uma correção fraterna (cf. Mt 18, l 5-l 6;Lc 17,3-4;GI 6,1)? Tudo se resolve quando você não se isola, se deixa questionar e ajudar pelo bispo. pelos colegas, vencendo a tentação tão doce do vitimismo, que barra a cura de qualquer dor, por transferir aos outros a culpa de tudo o que acontece.
É preciso coragem para vencer os monstros que está dentro de cada um de nós mesmos, e nos agridem. Coragem não é ausência de medo, mas é dominar o medo para que ele não paralise, não destrua.
É certo que se precisem de psicólogos e terapeutas em muitos casos, mas não em tudo. e nem com todos. O ser humano não é somente corpo biológico e consciência objetiva, passíveis de serem 8:iudados só pela psicologia, psiquiatria e terapia. Há o ser interior com o “corpo psíquico” cujo núcleo chamamos de alma, onde Deus habita em nós (cf. Cor 15,35-58; 2Cor 4,16-18; 2Tm 2, 11-13;1 Ts 4, 13- l 8;Fil 3, 20), como ensinam os místicos (c. Santa Teresa de Jesus in Castelo Interior ou Moradas) e os mesmos psiquiatras (cf. C. Jung e V. Frank).
Nesta área do interior de cada um, é Deus e você que podem atuar, é a área sagrada da consciência, local inviolável e impenetrável. Somos chamados nesta peregrinação terrena a transformar nossa inteligência para conformá-la a Cristo (cf. Rm 12,2), Ele é a realidade (cf. Cl 2,17) que nos tira da alienação e nos pode fazer chegar á realização completa como pessoa, pois “Ele é a nossa paz”(Ef 2, 14).
O certo é que sozinhos e isolados não superaremos este momento de crise. Também só com a ajuda das ciências, da medicina e da psicologia, tão necessárias, também não. Não são suficientes. O ser humano é mais complexo e necessita do que Jesus propõe: a conversão ao Reino de Deus. Esta conversão é um árduo trabalho que Deus opera no coração de cada um. Porém, Ele que nos criou e redimiu sem nós, não nos salvará sem nós. A conversão exige de você urna “kenose”. para perceber sua fragilidade, necessidade da companhia de Cristo caminhando contigo, como caminhou com os discípulos de Emaús. Caminhando com Cristo ·e os irmãos, você poderá fazer o que ninguém pode fazer por você: as mudanças na vida, mudança de postura e objetivos.
É necessário não desistir do projeto de santidade, vivendo a caridade pastoral, que é expressão da unção que recebestes para pastorear. Jesus quer estar presente, amar e servir através de você. Foi Ele que te escolheu. Pior que tudo é desanimar, deixar-se vencer, desengajar-se do projeto do Reino, para priorizar os projetos pessoais. Tudo se agrava com a falta de compromisso e divisão no clero.
No caminho penitencial quaresmal, convido você para desarmar-se. armados estavam os apóstolos antes de Pentecostes. e desejar viver a unidade que Jesus desejou para seus colaboradores mais estreitos. em sua oração sacerdotal (cf. Jo 17). Não desanimem com as fragilidades. Pelo contrário, é necessário assumir os pecados e equívocos, as fraquezas e dificuldades. Assumir sim, porque o que não é assumido não é redimido, nem corrigido. Se não se faz isso, corre-se o risco de perder o entusiasmo e estagnar-se. Ao invés de fugir dos problemas deve-se enfrentá-los com sabedoria e coragem. A Igreja é comunhão dos santos e pecadores. mas também dos penitentes.
O papa Francisco recentemente indicou quatro elementos que ajudam na superação desta crise que puxa o presbítero, o diácono. para o que se pode chamar “pantanal interior”, onde se atola na angústia e sofrimento psíquico, gerando, não raro, depressão. O papa chama de “proximidades”. as quatro indicações importantes para cada presbítero e eu diria também para cada diácono.
Proximidade com Deus. Aqui surge espontaneamente a valorização da espiritualidade que é vida dirigida pelo Espírito. A espiritualidade mais que vida de oração é capacidade de perceber o transcendente nos acontecimentos do dia a dia: “Para quem Deus for presente em todas as coisas e, quem dominar e usar maximamente sua razão, este somente, sabe da verdadeira paz e possui o verdadeiro Reino dos Céus” (M. Ekchart). Sem um olhar sobrenatural as realidades da vida se perdem em suas contradições e parecem sem valor.
Proximidade com o bispo. Para a Igreja Particular, o bispo permanece como um vínculo que ajuda a discernir a vontade de Deus. Ele é pai na fé de sua Igreja. Por sua vez, pede-se do bispo humildade, capacidade de escuta, autocrítica e desejo de ajudar. Confesso que tenho me empenhado nisto, às vezes, com êxito às vezes não. Porém, estou e estarei sempre aberto e pronto a ajudar. Sei do quanto às vezes é importante a presença do bispo e peço que me ajudem a ser presença que incentiva e anima, mesmo quando por dever tenho que chamar a atenção ou orientar. Não pretendo mudar ninguém. Esta é tarefa de Deus, só Ele pode tocar os corações. Mas pretendo ajudar naquilo que se pede do bispo, no cumprimento de meu dever, fiel à minha consciência. O certo é que jamais serei indiferente, desistindo de exortar, a tempo e fora de tempo, quer agrade ou desagrade (cf. 2 Tm 4,2-4). Seria cômodo para mim, mas não acho justo me omitir. A indiferença do bispo para com o clero é pior que a ingerência.
Proximidade entre os ministros ordenados, para afastar o drama da desconfiança, solidão, competição, inveja que não raro acabam separando os membros do clero. A capacidade de viver em comunhão em um mundo individualista é que nos salva. Onde há união e fraternidade entre os membros do clero, há mais força para superar os desafios. Para os presbíteros mais facilidade para se viver o celibato.
Proximidade com o povo, com os fiéis· leigos, e também com aqueles a quem precisamos anunciar Jesus. Experimentar a vida real do povo, como bom samaritano, é um desafio de todos os dias. A vida dos que recebem o ministério ordenado é para os outros: ninguém é ordenado presbítero ou diácono para si mesmo, mas para servir a Cristo nos irmãos. Se esquecermos isto caímos no clericalismo, que tanto mal faz à Igreja, adverte o papa Francisco.
Que você aceite esta minha mensagem como fruto de minhas orações e preocupações com cada um dos membros de nosso Clero. Recordo que também os religiosos provisionados na Diocese, sem interferir no carisma próprio, fazem parte do Clero. Não existe Congregação Religiosa separada de uma Diocese, o que seria caminhar fora da Igreja. A Igreja real é a Igreja que pisamos, a Diocese, não dá para fazer abstração.
Exorto a todos para que atravessemos esta quaresma aceitando o desafio que a Palavra de Deus nos propõe: conversão. Sem desânimo pois, “a virtude se aperfeiçoa na fraqueza”(2Cor 12,9), e a perfeição da virtude vem pela luta de cada dia, abençoada por Deus com sua graça e sua paz, que é a felicidade que nos foi prometida.
Um grande abraço fraterno a você. Persevere, seja generoso. Conte comigo e reze por mim.
Deus o abençoe sempre
Dom Pedro Carlos Cipollini
Bispo de Santo André
Source: Diocese