Recordo-me que fui incumbido de escrever um pequeno diário há quase seis anos, quando fui ao XVI Congresso Eucarístico Nacional, em Belém do Pará. Eu era seminarista e fui junto com um grupo de leigos, padres e do saudoso Diác. Vicente. Hoje, a PASCOM Diocesana me incumbiu de escrever também um diário deste retiro dos presbíteros de 2022. Penso ser algo simbólico e providencial, o que relatarei mais adiante. É a visão de um padre no meio de uma centena. Convido os que puderem a perguntarem aos padres da paróquia a experiência deles. Segue uma boa sugestão para este regresso. Foi o que tive aqui na Paróquia Cristo Rei e, também na casa de filosofia, mas… Vamos ao que interessa:
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Dia 16 de agosto – terça-feira
Pela manhã, infelizmente perdi a hora, acordei com o sino que toca aqui na casa de filosofia às 5h30 todas as manhãs, no convite para a oração. O dia anterior havia sido bem carregado, mesmo sendo a folga. Como não veria os seminaristas nos dias seguintes, mesmo assim desci, e tomei café com eles. Brinco que infelizmente naquele dia, como se fala, o corpo não havia feito o download da alma ainda, daí não consegui me arrumar em 10 minutos – o prazo que temos desde o toque do sino até o início da oração.
Após este momento fui resolver pendências da Paróquia e antecipar tudo que eu podia (até os avisos do domingo seguinte já entraram nestes despachos). Fui resolver questões do seminário e depois arrumar a bagagem com o que precisava. Dirigi até a Paróquia Santa Luzia e São Carlos Borromeu, onde encontrei Pe. William, que me acompanhou na viagem. Chegamos por volta de 13h em Itaici. No ano passado, infelizmente, não pude ir ao retiro, e me deparei com o mosteiro reformado e muito ajeitado. Entrar no quarto foi um susto, um positivo susto. O quarto sempre foi belo e singelo, mas a reforma lhe caiu bem, ficou muito prático, acessível, mas sem perder a simplicidade de um local que exala a espiritualidade inaciana.
O retiro foi aberto às 15h, com a Hora Média. Alguns dias antes eu pedi ao Pe. Vinícius, que nos ajuda nos assuntos da região enquanto Pe. George conclui suas férias, que me deixasse bem de cantinho, se possível sem assumir ou fazer nada, mas… Pe. Guilherme me pediu que fizesse a leitura breve na Hora Média. E assim participei desta primeira oração, nos meus desejos frustrados, mas fazendo o que Deus quis e me alegrando. Alguns minutos depois conheci o Dom Amilton. Para quem tem nomes mais raros (no Brasil são apenas 20 mil exemplares de “Hamiltons e Amiltons”) é muito estranho estar com um “xará”. E assim conheci o bispo que é meu xará. Fiquei muito feliz, pois já o seguia há muito tempo das redes sociais. O início de um retiro é, em geral, bastante marcante, e Dom Amilton foi muito feliz na escolha do tema das bem-aventuranças. Do começo ao fim foi muito bom.
Pela noite, após a missa, houve um momento mariano, que consistiu numa pequena procissão pelos arredores do mosteiro, que foi animada pela região São Bernardo do Campo Centro. Nesta caminhada refletimos sobre as sete dores de Maria. À frente ia um grande quadro de Nossa Senhora das Dores, seguido de velas que eram acesas ao longo da caminhada. Nesta procissão, fiquei como desejava, mais atrás, mais na retaguarda. Desde alguns dias antes, como já escrevi acima, me decidi a “beber” o máximo que eu pudesse, pois foram anos de muito esgotamento. Assim me mantive, mais atrás, observando e rezando.
Nos retiros em geral sou uma pessoa mais dada ao silêncio mesmo. Neste dia, quando da ida para a Vila Príncipe de Gales, mandei um recado aos grupos centrais da paróquia, com coisas do gênero: “gente, atendi todo mundo, e vou me retirar um pouco. Se alguém morrer, há os ministros das exéquias, se alguém for internado: rezem; se der algum problema em alguma pastoral, esperará até sexta…” E fiquei o que pude – retirado. Já há cerca de um mês retirei os aplicativos de meu celular e não sofri por estar mais “off line”.
Acabou o primeiro dia, antes de me deitar rezei as laudes que estava devendo da manhã, mais as completas. Confesso que ainda estava meio que “caindo” no retiro, algumas aflições ainda me acompanhavam.
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Dia 17 de agosto – quarta-feira
O segundo dia teve início com as Laudes. Eu acordei bem. O horário de retiro, comparado ao meu habitual, de fato, permite descansar. Tomei café com alguns padres na mesa mais perto da porta, me lembro de alguns: Pe. José Oswaldo, Pe. Miguel, Pe. Mário… Ali, troquei algumas palavras sobre Rio Grande da Serra. E seguiu o dia.
A primeira iluminação do dia versou sobre a bem-aventurança dos que choram. Refleti sobre o tema proposto, mas eu estava muito cansado após a palestra, com sono mesmo. E percebi que seria necessário descansar. E assim fiz. Deitei-me um pouco e acordei muito bem para a segunda iluminação do dia, sobre a mansidão. Depois, à tarde, veio a reflexão sobre a justiça. E senti grande paz. Até me peguei a responder novamente e com afinco as questões anteriores, de um modo mais atento. E senti grande paz após a reflexão sobre elas todas.
À noite a região Diadema ficou responsável de promover a adoração ao Santíssimo Sacramento, que ocorreu na Igreja de N. S. do Bom Conselho, local da maioria dos momentos de oração. Pe. Vinícius tocou violão, também Dom Amilton motivou a algumas canções muito bonitas. Neste retiro me propus a tentar participar, como disse, sem distrações, e acompanhei do banco da frente. Foi uma adoração muito bonita.
Concluiu-se um dia.
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Dia 18 de agosto – quinta-feira
Vamos de terceiro dia de retiro, neste eu já me sentia muito renovado. Creio que o cansaço acumulado de muitos dias já passara. As palestras do dia versaram sobre mais bem-aventuranças: a misericórdia, a pureza e a promoção da paz. Dom Amilton foi muito iluminado ao tratar sobre temas sensíveis aos padres, sempre com leveza. Uma característica de suas falas é a leveza, mas uma leveza com profundidade.
Pela noite houve a celebração penitencial. Chegamos à igreja em penumbra, como ocorrera na noite anterior, mas destacou-se a ornamentação. Para nós que estamos na caminhada das paróquias nada de novo: panos, vasos, menorá, cruz, incenso… Mas… olhar da assembleia é algo interessantíssimo.
Aqui digo algo por mim, não sei pelos outros padres. Nós presidimos muitas missas, sacramentos, reuniões, discussões, retiros… Às vezes é uma alegria e uma paz apenas participar. O padre é um homem de presidência dos ritos, mas poder se abastecer é incrível. Aqueles panos, vasos, menorá, cruz, incenso… Estavam revestidos de uma mística tão incrível que me restou apenas contemplar. Eu estava sentado no primeiro banco, à direita, e dali muitas vezes era muito incômodo ver a cruz preparada, ela estava voltada para o centro da Igreja. Eu via o Cristo apenas de perfil. Nesta impossibilidade eu fiquei contemplando muito a cruz do presbitério, que na igreja em Itaici é gigante, uma cruz de madeira, sem pintura, apenas verniz, ladeada pelas imagens de Nossa Senhora e de São João. O rito penitencial conduzido pelo bispo de Guarapuava foi muito tocante, bem como a cena única, vivida apenas pelos padres em retiro, das confissões entre nós mesmos.
Recordo-me quando eu fazia pastoral na Paróquia de Santa Luzia, em Ribeirão Pires, quando eu estava com o Pe. José Silva. Ele nos dizia (a mim e ao Sem. Rudnei, hoje colega nas reitorias) sobre esse momento do retiro do clero. Esse momento, para mim, neste ano de 2022, foi o momento de expressar uma cura muito grande. Há as confissões centrais da vida, a desse retiro foi uma delas, simples, com matérias simples sacramentalmente falando, mas muito profunda. Pude me confessar com um colega e amigo, o Pe. Marcos Vinícius.
Desta vez não atendi nenhuma confissão, mas na esperança de beber muito deste retiro, Deus me deu esta oportunidade de apenas receber e sentir sua misericórdia. Nos últimos tempos tenho falado muito da confissão aos fiéis de minha paróquia. Há um bom tempo a pratico com assiduidade e recomendo a todos que o façam.
Ao fim do rito, quando todos já haviam voltado, Dom Amilton fez um gesto de reconciliação enquanto presbitério. Rezamos o ato de contrição e recebemos a bênção. Recordo-me que ele pediu que nós abríssemos as mãos como que recebendo a graça. E assim o fiz, além disso fechei meus olhos e pedi a Deus todas as bênçãos que podem ser acolhidas a partir do perdão. Se fôssemos falar de uma das imagens a serem recordadas mais adiante no “filme” da vida, essa imagem certamente me trará alegria.
Não podia deixar de citar um gesto simples, mas bonito, muito simbólico para mim no retiro. Na hora do almoço o Pe. José Oswaldo e o Pe. Alexandre Cruz estavam entregando aos padres o convite para a missa de 25 anos de sacerdócio do Pe. Joaquim de Souza. Mesmo já sabendo e me envolvendo no evento, como fiquei feliz ao receber este convite físico, dado que devo muito ao Pe. Joaquim, que foi meu pároco por muitos anos, desde 2000 até 2009, quando entrei no seminário. Naquele convite, o trouxe espiritualmente ao retiro.
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Dia 19 de agosto – sexta-feira
O último dia gerou muitas emoções. De todos os retiros este foi o que passou mais rápido, praticamente passou sem eu ver. Quando menos imaginei já era o dia do fim. Rezamos como de costume e fomos à última palestra, sobre Maria, a Bem-Aventurada. Quando os sinos da Igreja anunciaram 11 horas teve início a missa, presidida por Dom Pedro Cipollini, e animada pela região São Caetano do Sul. Nesta missa tivemos a grande alegria da presença do Pe. David Vantroba, que completou há poucos dias 64 anos de ordenação presbiteral. Como era comovente ver Pe. David se alegrando quando um padre dizia o nome perto dele e ele reconhecia. Pe. David tem problemas de visão e era lindo ver ele se alegrando ao notar a presença de alguém que lhe trazia boas recordações. Na homilia, dentre tantas mensagens, Dom Pedro pediu aos padres que fossemos um presbitério que vive o amor, um presbitério unido que vai vencendo as muitas dificuldades.
Neste dia também Dom Amilton completou 5 anos de ordenação episcopal e recordando este momento, bem como rezando pela vocação de todos nós, ele pegou o violão e cantou uma música de sua autoria, que já aprendemos, cujo refrão diz: “Em tuas mãos, no teu coração, coloco a minha vida e a minha vocação”. Assim, entregues à Maria, terminamos nosso retiro.
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O retorno e um pequeno apêndice
Após a tradicional foto de retiro, desta vez no presbitério da Igreja, tirei uma foto com o bispo e depois fomos ao almoço. Meu estilo é mais reservado, e nestas situações, sento-me onde há vaga, na vida já é assim, quanto mais no retiro… Como cheguei bem mais tarde que a maioria, e as mesas já estavam cheias, sentei-me numa redonda, onde estavam apenas dois padres, a mais vazia que havia. E depois sentou-me ao meu lado o Dom Amilton. E foi puxando assunto. Sentou também Pe. Joel e nessas idas e vindas Pe. Joel falou que eu trabalho na formação. Eu apenas tinha dito sobre termos o mesmo nome e perguntas mais triviais sobre frio (ah, hoje fez muito frio… Só para constar). Quando Pe. Joel falou do assunto Dom Amilton também incluiu o tema da formação nas conversas.
Passou Dom Pedro na mesa se despedindo, me tocou no ombro e depois Dom Amilton também, como se diz: “foi puxando o carro”. Mas guardo com carinho as palavras do seu abraço: “rezo muito por vocês formadores, eu fui muitos anos e sei como é desgastante”.
Aos irmãos que aguentaram este relato até aqui, faço um pequeno apêndice, um fechamento. Nada mais merecido a vocês, que praticamente toleraram estas linhas. O Espírito tem caminhos que não entendemos. No ano de 2021, infelizmente, eu não pude estar no retiro do clero. Cada um vive uma realidade, de um jeito, com desafios particulares. No ano passado vivi uma tristeza gigantesca, por não poder ter ido, uma dor imensa e no seminário passei dias também frios, pensando muita coisa. De forma simples, uso aquela frase: “só quem passou sabe”, que retrata as dores vencidas de muitos de vocês. Muitos de nós padres, seguramos uma, várias ou muitas comunidades na pandemia. E isso afetou, afeta e ainda afetará muitos. Ano passado não consegui sair e deixar as atribuições. Novamente uso a frase: “só quem passou sabe”. E neste ano digo que este retiro na verdade começou em dezembro de 2021, quando pude lentamente, junto com o relaxamento das questões da pandemia, também deixar alguns fardos, com a ajuda de todos, de Dom Pedro, que ao me encontrar foi muito gentil ao me perguntar por que faltara no retiro, foi pai… Pai misericordioso. Aquele gesto paterno me ensinou muita coisa. E com a ajuda dos meus irmãos de tantos lugares fui conseguindo reanimar todas as coisas, hoje sinto que dentro do possível a paróquia vai relativamente bem, no seminário já vivemos “normalmente” (para constar, o único local onde eu não usava máscara era dentro do carro e no meu quarto), já tive covid, tomei as vacinas…
Um ponto alto do retiro de 2022 ocorreu na adoração, quando Dom Amilton pediu que recordássemos nosso lema de ordenação e fizéssemos uma prece. Depois de muitos (recordemos que sou uma pessoa tímida – nas procissões aqui da paróquia não parece, mas sou (risos), falei as frases que seguem: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra… Peço ao Senhor que dê a mim e a todos os padres força, coragem e saúde para continuar louvando a Ele apesar de nossas dificuldades”.
Esse é meu simples desejo a todos os meus irmãos.
Durante todo o retiro alguns padres brincavam comigo pelo fato de pregador ter o mesmo nome que eu. O nome é algo muito importante, inclusive e especialmente na Bíblia. Quando, na quinta, após um abraço da paz me apresentei como “xará” do Dom Amilton, ele ficou contente, foi e voltou (coisa de bispo), e me perguntou: você sabe o significado do nosso nome? Eu meio temeroso de estar errado respondi o que sabia: “aldeia fortificada”. Ele confirmou e sorriu.
E assim termino. Agradeço a Deus por tudo, por estarmos nos levantando de um grande tormento da humanidade. O encontro do Hamilton com o Amilton me faz pensar que de fato temos uma grande aldeia fortificada, Jesus. Numa reunião do clero em 2021 Dom Pedro já afirmara isso. Há muitos recursos humanos, mas na vida cristã a fé exerce um papel fundamental, Jesus é o centro, muita coisa ajuda, mas Ele é o centro. E agora, no fim das linhas deste relato, já penso na última missão dada nos momentos do retiro: “Elabore um pequeno projeto de vida espiritual até o próximo retiro”. Desejo de coração que este ano “espiritual” seja maravilhoso para todos, e que nossas paróquias sejam muito felizes com seus pastores.
Pe. Hamilton Gomes do Nascimento
Reitor da Casa de Formação Filosófica do Seminário Diocesano
Pároco da Paróquia Cristo Rei de Diadema
Source: Diocese