Todo dia 12 de maio é comemorado o Dia Internacional da Enfermagem e o Dia do Enfermeiro. A data foi instituída para recordar Florence Nightingale (1820-1910), um marco da enfermagem moderna no mundo. No Brasil celebra-se a Semana da Enfermagem, entre os dias 12 e 20 de maio. E para homenagear esses profissionais enfermeiros e enfermeiras na linha de frente durante a pandemia da Covid-19, a Diocese de Santo André realizou duas entrevistas: uma com o coordenador de Enfermagem do Hospital de Campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André, Marcelo Franzé Silva, 35 anos; e outra com a enfermeira que atua na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital São Luiz de São Caetano, Bruna Azevedo da Silva, 30 anos.
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Atendimento humanizado: o aprendizado no Hospital de Campanha
Marcelo Franzé Silva, 35 anos, é enfermeiro por formação há 12 anos. É casado com a jornalista Nahama Nunes e tem dois filhos: Arthur (4 anos) e Bernardo (2 anos). Quando foi convidado para essa missão, ambos filhos tinham 3 e 1 ano de idade, respectivamente. Coordenador de Enfermagem no Hospital de Campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André, Marcelo nos conta sobre os desafios, a experiência adquirida durante a pandemia, as superações e as histórias marcantes que ficam como aprendizado deste momento na luta para salvar vidas, diariamente. Confira:
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1. Quais os desafios de atuar na linha de frente durante a pandemia?
No início dos trabalhos nos deparamos com uma doença desconhecida. Pelo pouco que sabíamos não tinha como deixar de temer o risco de se contaminar com o vírus. Isso tirava o meu sono. Enfrentei inúmeras discussões com minha esposa, pois naturalmente ela temia muito por minha saúde e da nossa família. Ela, pelo próprio ofício da profissão, estava muito ligada aos noticiários do mundo todo que só se falava de coronavírus 24 horas por dia. Entretanto, eu não desejava outra coisa se não estar na linha de frente fazendo o que eu sei fazer de melhor na vida, que é cuidar de pessoas. Esse foi meu primeiro desafio, conseguir a compreensão da esposa, pai e mãe. Consegui e melhor do que isso, tive um apoio tremendo, principalmente da minha amada esposa.
Não posso deixar de dizer qual foi o meu maior medo: levar essa doença para dentro de casa. E pior, perder alguém que eu amo. Quando chegava em casa, após um longo dia de trabalho, muitas vezes com as crianças já dormindo, (o que eu preferia, pois eles sempre vinham correndo me abraçar e não podia fazer isso) fazia um ritual de me despir na lavanderia e correr para o banheiro tomar banho, para depois sentar para jantar ou conversar com minha companheira.
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2. E como é a experiência de trabalhar num hospital de campanha? Quais as particularidades?
Outro desafio foi compor uma equipe de enfermagem grande, onde todos os recém-contratados, em sua maioria, não tinham experiência na área. Isso foi muito interessante e um trabalho árduo que compartilhei com a minha colega, a também coordenadora de enfermagem Juliane Cheriti. Identificamos os técnicos e enfermeiros com experiência e conseguimos montar uma equipe potente de multiplicação de saberes para toda equipe. Tínhamos como característica muito forte o atendimento extremamente humanizado e com uma esculta apurada para as mais diferentes queixas dos pacientes com Covid-19.
O hospital foi ganhando corpo, aumentando progressivamente o número de internações e cada dia com mais pacientes graves e infelizmente com algumas perdas inevitáveis. Isso também mexe com o nosso psicológico. Não foi fácil ver algumas famílias se desmancharem pela covid-19. Essa doença atinge pessoas sem discriminação de credo, cor ou condição social e, muitas vezes, acaba levando-as sem nenhum histórico de comorbidades. Trabalhar dentro de um hospital de campanha é ter que ser flexível a todo momento, utilizar da imaginação para construir fluxos e protocolos para nortear uma equipe tão heterogênea e ao mesmo tempo nos empenhar para fazer tudo dar certo. É ousar e improvisar conforme a necessidade que também é instável. Ao mesmo tempo é a coisa mais importante e gratificante que já fiz em toda a minha carreira profissional.
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3. Tem uma história marcante desse período de atuação? Algo que lembrará para sempre?
Eu tenho inúmeras histórias marcantes para registrar, muitas delas não têm como transmitir pelo papel. Mas tenho a certeza que elas estarão para sempre na minha memória. Algumas histórias tristes e muitas com desfecho emocionante. Vou contar uma que me marcou, na verdade foi um instante de cena que presenciei. Fui chamado por uma enfermeira no G-2 (ginásio onde na época tinham pacientes homens e com menor comprometimento pulmonar, ou seja, ofereciam menor risco de evoluir para uma intubação) para ajudar com um paciente “teimoso”. Quando cheguei lá, vi umas das cenas mais lindas da minha vida: um jovem (que seria o “teimoso”) estava em pé dando comida para um idoso debilitado no leito. Me recordo desse rapaz se agachando e falando bem próximo do ouvido do senhor com muita paciência e carinho para ele aceitar a dieta. Quando me aproximei e perguntei para o jovem o motivo dele estar em pé, fora do seu leito alimentando outro paciente, ele educadamente me disse que fazia questão da sua atitude porque o senhor era o seu pai.
Fiquei vislumbrado com essa cena. Lembro que ele disse que estava se sentindo bem naquele dia e por isso queria ajudar o seu pai a comer. Fiquei envergonhado de não saber que se tratava de pai e filho internado ao mesmo tempo, me desculpei e continuei ali vendo e incentivando aquele senhor ingerir um pouco da dieta. Finalizei pedindo para a enfermagem trocar o leito do filho que estava longe do leito do pai, para deixar a cama deles uma ao lado da outra. Era o mínimo que podia fazer para me redimir por não terem feito isso logo na internação dos dois. Enfim, sei que pode não causar muita ou nenhuma emoção, mas acredite que para mim foi uma cena linda e inesquecível ver o filho retribuindo o amor de uma vida toda, que provavelmente esse pai dedicou a ele. Para mim, o gesto singelo desse jovem demonstrou o quanto ele queria ver seu pai melhorar. O filho teve alta dias depois desse episódio e o pai após uma semana. Essa foi uma história marcante e feliz.
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4. Qual o aprendizado que ficará para você destes tempos de superação, tanto profissionalmente quanto espiritualmente?
O maior aprendizado que levarei do Hospital de Campanha é a humanização no cuidado que contribui no processo de recuperação de cada paciente. Respeitar a história e o contexto de cada um, que esteve internado com a gente, é fundamental para o sucesso do trabalho que todos nós, profissionais da saúde, estamos desempenhando nesta unidade. Não tem como sair do Complexo Pedro Dell’Antonia (quando tudo acabar e peço a Deus que seja logo) sem ter compreendido e amadurecido com essa lição. As questões aqui vão muito além do profissional e nos trazem aprendizado para a vida. Nunca me senti tão perto de Deus. Sempre faço as minhas preces em silêncio para os que partem, para a recuperação dos que continuam internados e agradeço a Deus por cada paciente que vence a doença e sai daqui com alta. Aliás, a alta no hospital é emocionante. Fazemos um corredor de salva de palmas para nos despedirmos e eu sempre me emociono em todas elas. Enfim, isso é um pouco do que vivi e ainda vivo no Hospital de Campanha.
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Amor ao próximo: “guardamos a nossa dor para cuidar da dor do outro”
Bruna Azevedo da Silva, 30 anos, é enfermeira há quase 10 anos. Fez residência em saúde do adulto e idoso na USP (Universidade de São Paulo), especialização em nefrologia e urologia pelo Einstein, e atualmente pós-graduanda em terapia intensiva e cardiologia e hemodinâmica pela Faculdade Cleber Leite. A enfermeira, que atualmente trabalha na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital São Luiz, em São Caetano, no Grande ABC, destaca os desafios na linha de frente durante a pandemia, a luta para cuidar e salvar vidas, bem como o aprendizado deste período que ficará em sua memória. Acompanhe:
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1. Quais os desafios de atuar na linha de frente durante a pandemia?
Os desafios da Enfermagem durante a pandemia foram inúmeros, mas dentre eles, lidar com a solidão dos pacientes durante o período de internação e manter a motivação própria e da equipe em um cenário de caos foram realmente marcantes. Vivenciamos uma verdadeira guerra, não havia ninguém presente para o doente, nenhum conhecido, apenas nós. Estávamos lá para explicar os procedimentos, medicar, cuidar, ouvir, segurar na mão e dizer que tudo ficaria bem, mesmo sabendo que aquilo poderia não ser verdade. Estávamos lá para fazer aquilo que fosse necessário para salvar a vida de qualquer um que precisasse, mesmo trabalhando no limite e exaustos. Literalmente guardamos a nossa dor para cuidar da dor do outro.
Manter a motivação nesse cenário foi o mais difícil, pois não havia fim, os pacientes não paravam de chegar, um número absurdo de intubações, pronas, paradas, hemodiálises, óbitos, parecia não ter fim. Mas alguém precisava estar lá, alguém precisava se manter de pé e ser útil àqueles que necessitavam, essa era a nossa motivação.
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2. Tem uma história marcante desse período de atuação? Algo que lembrará para sempre?
Histórias marcantes terei várias, acredito que a principal e mais recente foi a de uma paciente jovem, 33 anos, gestante de 29 semanas, que precisou adiantar o parto, o bebê ficou bem e a mãe foi intubada dois dias depois. Antes de ser intubada ela disse à equipe que não queria ficar sozinha, e nós garantimos que não ficaria, e cumprimos. Estivemos presentes todos os dias, nas inúmeras pronas, exames e procedimentos que foram necessários lutando pela vida dela, até o dia em que ela morreu. Fizemos nossa parte e infelizmente não foi o suficiente. Essa sem dúvidas, foi a história que mais me marcou.
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3. Qual o aprendizado que ficará para você destes tempos de superação, tanto profissionalmente quanto espiritualmente?
Dos inúmeros aprendizados que levarei, sem dúvidas os principais é de que a Enfermagem não é apenas uma profissão, é amar ao próximo e fazer por ele o que faríamos por alguém da nossa família, independente de quem ele seja. E de que Deus realmente capacita os escolhidos, se não fosse por Ele não teríamos conseguido suportar tão grande carga como suportamos nessa pandemia.
Source: Diocese