Introdução
Vamos tratar aqui de espiritualidade. O que é espiritualidade também chamada de vida interior?
O homem sem vida interior cai num mecanismo que desfigura a realidade: simplifica o que é complexo e complica o que é simples. Padres sem espiritualidade correm o risco de trabalhar em vão. Vão pescar mas não conseguem nada, as redes estão furadas. A mediocridade toma conta.
- Divisão entre corpo e alma, material e espiritual, Mundo e Eternidade na história recente do cristianismo
Durante muito tempo houve aversão a este conceito (espiritualidade) devido à compreensão errada do que seria espiritualidade.
Para muitos cristãos durante muito tempo espiritualidade significava tudo aquilo que dizia respeito ao espírito em contraposição ao corpo. Esta é uma concepção de espiritualidade que vê o ser humano na visão platônica: “o corpo como prisão do espírito”. Assim quanto menos corpo mais espírito, quanto mais enfraquecer o corpo que é prisão do espírito, mais a espiritualidade será vigorosa.
O corpo assim era visto como inimigo da alma. O corpo deveria ser esquecido e com ele tudo o que se relaciona com o corpo: trabalho, história, prazer, dor, sofrimento, festa, etc… São Paulo dirá: “Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão”(1Cor 9,27).
Espiritualidade era o terreno no qual se dava a guerra da alma contra o Mundo e aquilo que é do Mundo. Só a Eternidade interessava.
Hoje no entanto espiritualidade tem seu sentido a partir da Sagrada Escritura ou seja é o que se refere ao Espirito Santo agindo em nossa existência como agiu na existência de Jesus. Tanto o corpo como o Mundo são reconhecidos como criação divinas.
Esta espiritualidade dualista de corpo x espírito está superada. Deus criador viu que tudo era bom (cf. Gn 1,31).
- Qual a realidade em que vivemos hoje? Em que mundo se situa a Espiritualidade na atualidade?
Observam-se modos cada vez mais explícitos de experiências religiosas que emergem atravessados pelas marcas da cultura de mercado globalizada que bem mais que uma época de mudanças tem-se configurado como uma mudança de época (DGAE 2008-2010).
Neste contexto desnorteador, notam-se duas atitudes preponderantes: 1ª) de um lado um agudo relativismo e de outro, 2ª) posturas fundamentalistas que, ao se fechar em determinados aspectos, desconsidera a pluralidade e o caráter histórico da realidade.
Destas duas atitudes, desdobram-se um conjunto de outras que atingem diretamente a experiência religiosa de nosso povo: a) a ideia de um “vale tudo”, no qual todas as formas de viver a fé são boas; b) um marcado individualismo que privatiza a fé e a transforma em forma de satisfação de suas necessidades materiais, terapêuticas e emocionais; c) um afrouxamento dos vínculos de pertença que levam a rotatividade seja por entre denominações, ou mesmo por entre paróquias e comunidades da mesma raiz religiosa.
Tais atitudes não podem ser percebidas meramente como produtos de uma ação evangelizadora ineficaz por parte da Igreja. Embora revelem alguns limites desafiadores desta ação evangelizadora. Tais atitudes são sintomas de um quadro maior no qual a experiência de fé acontece, a saber:
- a) as incontáveis carências vividas pelo povo ligadas à saúde, à moradia digna, à educação, às questões de natureza afetiva;
- b) ao quadro de incertezas e relativismos, que leva a busca do religioso como tábua de salvação e escape da dor e do sofrimento;
- c) ao lado de um exagerado secularismo cresce o apelo a explicações e soluções mágicas e alienadoras, inclusive dentro do catolicismo;
- d) Poucos sacerdotes. O persistente centralismo institucional e clerical, dificultam a proximidade da igreja junto aos problemas cotidianos de seus fiéis;
- e) este distanciamento tende a produzir uma linguagem artificial ou a fuga para o emocionalismo e espetacularização da fé como estratégias evangelizadoras.
A verdade religiosa parece se transformar em opinião pessoal. Complexidade, diferenças e fragmentação. Tudo é revisado continuamente. Exclusão crescente e violência constante.
Neste contexto são muitas as correntes de espiritualidade tanto dentro como fora da Igreja. A Espiritualidade pode ser fonte de alienação ou de libertação. Em meio a tudo isso, corremos o risco de perdemos o contato com o centro de nossa alma. É ali que Deus reside: “Deus me é mais íntimo que minha própria intimidade” (S. Agostinho in Confissões, Liv. LVII 6,4)
- Para o cristianismo o que é Espiritualidade. Como a Igreja entende esta realidade tão importante na sua existência qual seja a Espiritualidade?
Espiritualidade é tudo o que se refere à ação do Espírito Santo na vida do cristão. É o domínio do Espírito, o Caminho do Espírito Santo que preside a evolução dos tempos (GS 26).
São Paulo descreve o homem espiritual como aquele que vive o projeto de Deus para sua vida: a santidade! Tem espiritualidade verdadeira aquele que diz sim a Deus com sua própria vida. É a fé que age pelo amor (Gl 5,6), a partir de um encontro pessoal com Jesus Cristo e a união de vida com Ele. Tem espiritualidade quem se torna discípulo e seguidor de Jesus Cristo no dia a dia da vida.
Espiritualidade é organizar a vida conforme a inspiração do Espírito Santo que é nosso santificador. Sua ação visa fazer-nos ser parecidos a Jesus Cristo: “Meu viver é Cristo” “Já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. “Se vivemos pelo Espírito, sigamos o Espírito”(Gl 5, 25).
Jesus disse a Nicodemos que é preciso nascer de novo (Jo 3,3). Para isso é preciso estar atento e vigilante para perceber as moções do Espírito que age em nosso interior e na realidade que nos cerca. Dizia Paulo VI que é preciso ter “ouvidos metafísicos” para ouvi-lo no momento em que vivemos.
O Espírito Santo aparece no princípio pairando sobre as águas da qual surge a vida na Criação, inspira os profetas e os patriarcas. Ele está presente na Anunciação e no batismo de Jesus, no início de sua vida pública, etc. Após a ressurreição é apresentado em Pentecostes como paráclito e protetor, consolador e advogado, etc
Conhecemos o Espírito Santo por seus símbolos:
Pomba, recordando a pomba que sai da Arca anunciando o reinício da criação, simboliza a instauração do Novo Povo de Deus por Jesus.
O vento; a força incontrolável do ar sem o qual ninguém pode viver, ar que respiramos em comum (comunhão)
Fogo: que ilumina, aquece e purifica símbolo do amor e da inspiração dos testemunhas de Cristo.
O papel do Espírito Santo consiste em dinamizar no coração dos cristãos e no coração da Própria Igreja o que Jesus Cristo realizou com sua redenção. O Espírito Santo infunde amor e liberdade (divinização).
O Espírito Santo age na Igreja, mas não é monopólio dela, ele age onde quer, sopra onde quer… Assim, chegamos à compreensão que espiritualidade diz respeito ao Espírito Santo.
- Sem vida no Espírito não se pode ser cristão. Somente pessoas que vivem no Espírito e do Espírito Santo poderão trabalhar na construção do Reino de Deus.
Mais que nunca, em nossos dias, é imprescindível o cultivo de uma espiritualidade forte, capaz de sustentar o cristão. Sabemos que o equilíbrio entre a interioridade e a exterioridade é uma condição básica da saúde humana.
A vida de uma pessoa consagrada, de um presbítero não poderá ser fecunda se não alcançar a harmonia entre interioridade e exterioridade. Por isso, a necessidade de parar para refletir, para cultivar a espiritualidade, de fazer silêncio.
É a Palavra de Deus, é o Espírito Santo que nos orientará nesta selva interior para não nos atolarmos nos pantanais da alma.
Espiritualidade então o que é? É uma vivência, uma maneira de viver, um estilo de vida; “Uma pessoa será verdadeiramente espiritual (sábia) quando houver nela presença clara e atuação marcante do Espírito Santo de Deus, quando vive movida pelo Espírito. Espírito é substantivo concreto, e espiritualidade é o substantivo abstrato” (D. Pedro Casaldáliga). São Paulo nos recorda que Os verdadeiros filhos de Deus são aqueles que são movidos pelo Espírito Santo (cf. Rm 8, 14).
Tudo o que Jesus fez foi movido pelo Espírito, Jesus foi um homem de profunda espiritualidade (Mc 1,12). Espírito, como vimos, não é o contrário de matéria (Jesus não separa corpo e espírito); para ser espiritual, não precisamos fugir do mundo: espiritual é tudo o que é tocado por Deus (Jo 3, 9-15).
Vida espiritual é o processo de iluminação crescente através da fé que vai eliminando nosso medo. Quem comanda este processo é o Espírito Santo : o dom de Deus como diz o rito da Crisma. É viver a melhor parte que não será tirada (cf. Lc 10,38-42).
A espiritualidade é como a seiva da árvore, é o motor que impulsiona a caminhada. Examinar nossa espiritualidade é fazer algumas perguntas básicas: Como está minha escala de valores? Qual o centro de minha vida? Qual a força que me impulsiona? Sou capaz de ter compaixão? Para nós, cristãos, espiritualidade é seguimento de Jesus Cristo na força do Espírito. Espiritualidade é viver a vida a partir de dentro.
Estar centrado no núcleo profundo de nós mesmos onde habita Deus, e aí permanecer unido a Ele, isto é ter espiritualidade.
A espiritualidade só é possível em um processo de conversão no qual você busca ouvir o Espírito: fazendo a passagem do homem desintegrado (Gl. 5, 19-21) para o Homem integrado (1Cor. 13,1-8).
Devemos fazer um discernimento: se estamos seguindo uma espiritualidade geradora de vida ou geradora de morte:
* Espiritualidade geradora de vida——-a de Moisés
(fé que age imitando o agir de Deus em favor da vida)
* Espiritualidade geradora de morte——-a do Faraó
(fé desencarnada, conformismo e ritualismo, em favor de si mesmo e do seu grupo de poder: leva ao fanatismo)
(O faraó construía muitos templos, era super religioso)
Conclusão
Na vida espiritual que é este processo de conversão ao Espírito Santo, temos de ter tempo de ouvir, de refletir. Tempo para deixar Deus nos visitar, e devemos acolhê-lo.
Aqui a obediência é essencial (Ob – audire), ouvir o que o Espírito diz, perceber os sinais dos tempos. Daí a necessidade de muitas vezes, fazer silêncio: “O silêncio é mistério do século futuro, as palavras são utensílios deste mundo” (Isaac o Sírio in Hom. 56)
São João da Cruz escreve: “Uma palavra disse o Pai, que foi seu Filho; e di-la sempre em silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela alma” (in Ditos de Amor e Luz n.98).
Segundo São Gregório Magno, vida espiritual contemplativa e vida eterna não são duas coisas diferentes, mas uma única realidade: uma é a aurora, a outra o pleno dia que não tem fim.
Vida espiritual é colaborar com o trabalho do Espírito Santo em nós agindo através da graça, a qual não podemos desperdiçar.
Dom Pedro Carlos Cipollini
Bispo de Santo André
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