O bispo da Diocese de Santo André, dom Pedro Carlos Cipolini, acompanha com pensamento crítico o caos em que o mundo se encontra, seja na Nicarágua, país em que o ditador Daniel Ortega manda prender quem pensa diferente, ou no Brasil, que na última década tem passado por momento político conturbado. Para o líder religioso, as ideologias, palco para a Guerra Fria, ficaram no passado e a humanidade deve buscar alternativa para evitar aumento de conflitos. “É preciso reverter isso recuperando os valores do próprio ser humano, independentemente de religião, de crença, saber se dar bem, saber conviver, saber repartir, partilhar, se alegrar junto”.
Raio-X:
Nome: Pedro Carlos Cipolini
Idade: 70 anos
Local de nascimento: Caconde, no Interior de São Paulo.
Formação: Doutor em Teologia e Eclesiologia
Hobby: Ler e passear
Local predileto: Campos do Jordão
Livro que recomenda: Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis
Filme preferido: La Nave Va, de Federico Fellini
Personalidade que marcou sua vida: Dom Evaristo Arns
Profissão: Bispo de Santo André
Onde trabalha: Diocese de Santo André
Diante da crise que vivemos, tem-se um aumento da violência no Brasil, não só física, mas verbal. Temos uma ditadura na Nicarágua, um golpe tentado no Peru e uma guerra na Ucrânia. Em qual momento o ser humano errou?
Eu penso que nós estamos numa mudança de época. Uma mudança de época muito grande. E o ser humano busca segurança. Todos os grandes esquemas e ideologias faliram. E nessa busca por segurança, há muita tentativa errada. Então, aquilo que já era atrapalhado tende a se agravar, como a violência, o ódio. Mas é preciso ter coragem de buscar um novo caminho. Uma nova maneira de convivência, uma nova maneira de gerir a economia. Tudo isso, no meu modo de ver, passa pela solidariedade. Se a humanidade não descobrir o valor da solidariedade, nós vamos ter cada vez mais agravamento nessa crise, que é uma crise de humanidade. O ser humano está desentendendo o que é ele mesmo. Quer dizer, o ser humano não foi criado para o ódio, a violência, a ganância. Então, nós estamos numa crise do próprio ser humano. E é preciso reverter isso recuperando os valores que o próprio ser humano tem dentro dele, independentemente de religião, de crença. Saber se dar bem, saber conviver, saber repartir, partilhar, se alegrar junto. Eu acho que é por aí. A solidariedade é a palavra-chave para sairmos dessa situação terrível de crise na qual estamos.
O sr. citou a “ganância”. Acredita que é a pessoa gananciosa, com pensamento muito comum hoje do ””eu quero””, ””eu posso””, ””e se tiver que pisar na cabeça de alguém vou pisar””. Enfim, a gente está muito rodeado de sentimentos impuros, digamos assim?
Sim, são sentimentos falsos que prometem a felicidade, mas não dão. Você nunca vai ser feliz competindo, destruindo o outro para tomar o que é bom. Você só será feliz quando o outro também for feliz. Porque nós estamos pisando o mesmo chão. A viagem que a humanidade faz é no mesmo barco. Quando você destrói o outro para tomar algo, você está dando um “tiro no pé”. Porque nós estamos no mesmo barco, não é? Quando a gente viaja junto por um mar perigoso no mesmo barco, a gente tem que ser unido e não desunido. De forma que toda essa competitividade de que a sociedade tem, esta ganância pelo dinheiro, mostra que nós fizemos do centro das nossas preocupações o dinheiro. Quando no centro das nossas preocupações devia estar o ser humano. Tanto é que quando falam assim, ””o PIB está bom, o País vai bem””, mas quem disse que se o PIB está bom, o País vai bem? O PIB está bom para quem? O povo está passando fome. A fome voltou. E não é o PIB bom que faz a distribuição do alimento, que faz a distribuição das oportunidades da educação, da saúde. O que faz a distribuição é a vontade política, as políticas públicas movidas por um sentimento patriótico, verdadeiro e de solidariedade. Para que todos tenham dignidade, tenham vida. Então eu penso que a competitividade exacerbada na sociedade é destrutiva. Faz mal até para o próprio mercado. Cachorro muito fiel ao dono acaba atrapalhando porque se enrosca na perna dele e o derruba. A competitividade deve existir no mercado, mas quando ela é demais, atrapalha o próprio mercado.
Há ainda a questão climática, que pode prejudicar o Planeta. E muito se deve ao sentimento da ganância, porque só ficamos na promessa com propostas para 2030. Chega 2030 e empurra para 2040. Como o sr. disse, uma hora o dinheiro não vai solucionar…
Não vai. Olha, o papa Francisco tem uma encíclica, uma carta muito boa chamada Laudato Si. Em português seria “louvado seja”, que é sobre a ecologia. E ele fala que se nós não tomarmos providências urgentes, o preço a pagar será muito alto em destruição. E a destruição será pior e vai começar pelos mais pobres. Agora, eu comparo essa situação que nós vivemos, de um adiamento compulsório. Toda a assembleia que se faz para resolver o problema é adiado. As soluções são adiadas e não são implementadas. Eu comparo ao que está na Bíblia. Quando teve o dilúvio. Na Bíblia, Deus avisou. E ninguém deu bola e Noé foi convidado a fazer uma arca de madeira para que quando viesse o dilúvio, ele se salvasse. Todo mundo ria dele, falava que ele era louco. E veio o dilúvio, as águas foram subindo e ele entrou na barca e se salvou. Então, eu vejo a mesma coisa. Estão avisando que o desastre é iminente, mas ninguém liga. ””Ninguém””, que eu digo, são essas grandes potências poluidoras que se recusam a assinar acordo, como Estados Unidos e outros, de forma que o desastre vai acontecer se não tomarmos providências. Quando eu era estudante, lembro de ter visto um filme de (Akiro) Kurosawa, cineasta japonês, que já falava sobre essa questão climática. Ele mostra uma cena no qual o calor é tão grande que as pessoas vão se queimando. Mas isso, na década de 1970, 1980, as pessoas achavam que era uma imaginação fértil, mas os artistas conseguem ver antes, não é? São os poetas dos acontecimentos. A questão climática aqui no Grande ABC é sensível. Você tem as quatro estações no mesmo dia, você tem descontrole em várias partes do nosso Grande ABC. Só quem não quer ver não enxerga. Precisávamos ter uma solução, mas só que, nesse caso, a solução tem que ser global, não basta um só querer.
No Grande ABC, um dos problemas é o período de chuvas. Já virou um problema, digamos, comum. Neste ano, uma pessoa morreu em Mauá, outra morreu em São Bernardo. A gente vê muita promessa, mas não vê solução na prática. O povo demonstra cansaço, quer ver ação…
Pois é, mas aí entra toda aquela história do politicamente correto. Eu fico com pena dessa Represa Billings, que é uma riqueza. Uma quantidade maravilhosa de água, mas, por interesses de muitos que deveriam governar a favor da população, é ””permitido”” jogar lixo, é ””permitido”” jogar esgoto, é ””permitido”” ter chácaras dentro da área da represa. Quer dizer, é um depósito de água que se entrar em colapso, será um desastre. E depois é uma água que se permite todo mundo sujá-la para depois tratá-la e usar. Tem toda uma engrenagem de interesses políticos, econômicos que prevalecem sobre o bem da saúde e da vida da população. ””Ah, mas o pessoal não tem onde morar, está lá na beira.”” Mas aí o poder público tem que arrumar outro lugar para aquele povo morar, quer dizer, tem muita solução. Eu digo para você que no Brasil tem solução para tudo ou quase tudo. Quando se quer aplicar a solução, porque o nosso poder público tem recursos, tem dinheiro e não é só questão de corrupção. É questão de incompetência também. A gente bate muito na corrupção, que é verdadeira, é endêmica aqui no Brasil, faz parte, infelizmente, da vida pública, mas a incompetência também é muito grande. São projetos que são feitos, se gasta para fazer o projeto. Depois ele não serve. Depois ele não é implementado; começa, não acaba. Então são coisas assim que, infelizmente, fazem um sofrimento para o povo muito grande. O povo sofre muito com a corrupção e a incompetência, porque são duas irmãs gêmeas que não se largam e estão sempre juntas infernizando o nosso povo.
Atualmente vivemos em um período em que religiosos se tornaram alvo e estão sendo perseguidos. Um exemplo é o padre Júlio Lancelotti, em São Paulo. Temos também, fora do Brasil, a Nicarágua, numa ditadura que prende padres. O sr. vê isso como casos graves?
Eu me recordo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, inclusive pelo Brasil, e a maioria dos países. E lá há o direito à liberdade religiosa. Está lá na nossa Constituição também. O Estado é laico, justamente para garantir a liberdade de todas as religiões. No Brasil, infelizmente, há confusão entre Estado laico e laicismo. O Estado laico não tem uma religião oficial e garante a liberdade de todas. O laicismo é dizer ””Deus não pode entrar em nada, nenhuma religião presta, só aquela que me apoia””. Então, o que acontece, por exemplo, na Nicarágua, é a negação dos direitos universais da pessoa humana em relação à religião. E o ditador lá, que é um ditador de esquerda, quer colocar tudo debaixo do seu poder, é a sede de poder. Ora, nenhuma religião pode ser comandada por um poder estatal. O padre, no caso que você citou, procura ajudar as pessoas que estão é marginalizadas, sofridas. Tem uma margem de pessoas na nossa sociedade que não tem projeto nenhum. Mas o Estado, mesmo para muitos segmentos, não tem projeto nenhum. Por exemplo, casas populares exigem ao menos que se ganhe um salário mínimo. E quem não ganha o salário, não pode se inscrever para ter uma casa popular? Então, a questão da religião implica uma atitude social. Se você tem fome, é um problema material seu, mas se o seu irmão tem fome, é um problema espiritual seu, porque se você não fizer nada, Deus vai te cobrar. ””Tive fome e não me destes de comer.”” Está lá no capítulo 25 do Evangelho de São Mateus. Por isso, toda essa intolerância religiosa é sinal de uma intolerância à fraternidade, à solidariedade, ao amor que Jesus ensinou. O papa João Paulo II disse que o XX foi o século na história onde mais a Igreja Católica foi perseguida e mais se mataram pessoas por acreditar em Jesus Cristo, e é verdade.
Publicado primeiro em: Diário do Grande ABC
Source: Diocese